É para o alto que se deve cair
Sempre acreditei que só há um tipo de memória que devemos guardar. E ela não fica na cabeça, mas no corpo. É que as articulações são menos mentirosas que nossas sinapses. Trago poucas, mas só elas me dizem realmente quem fui e como vivi.
Depois de cruzarem aquela bola, lá do meio da rua, corri para cabeceá-la. Meu irmão fez o mesmo. Só que por ser muito maior que eu, seu ímpeto também era proporcional. E ao invés da bola, acertou minha cabeça. Foi minha última lembrança. Só os pontos não me deixaram esquecer de nada. Acordei tonto, com água fria no rosto, a olhá-lo com os olhos mais assustados que os meus. Se naquele fim de tarde eu não tivesse arrebentado minha cabeça contra a dele e desmaiado, talvez hoje ele fosse menos cuidadoso comigo. A gente toma gosto por não querer ver machucado quem amamos.
E, que ironia, porque um tempo depois, o mesmo irmão, que cuidou de mim naquele dia, quase me esmagou com o carro. Na garagem, eu, meus brinquedos e aquele mundo que só existia para mim. Foi quando ele chegou com meu pai. Adolescente, ele aprendia a dirigir. Adolescente, ainda não sabia que sua ansiedade era mais pesada que seu pé. Ele não me esperou sair da garagem. Fui esmagado contra o muro. E, que coisa, minha caixa de brinquedos salvou minha vida, amortecendo meu corpo contra o carro. Logo comigo, que sempre achei que era mesmo um super-herói, uma espécie de homem de ferro. Mas quebrei o quadril. Nove meses sem andar. Que bom. Na escola, estaria na quarta-série. Na cama, os livros não tinham idade. Foi quando aprendi a ler de verdade.
Uma outra vez, meu vizinho me enfiou um pedaço de antena de TV nos olhos. Fazíamos revólveres com aquilo. Na brincadeira, apagávamos bandidos. Na vida real, minhas vistas quase se apagaram. E lá no hospital, aprendi como é bom voltar a enxergar. A primeira pessoa que vi foi minha mãe a me olhar de um jeito totalmente novo. Fiquei feliz, porque o que vi, não precisava dos olhos para enxergar: seu abraço me contou tudo. O mesmo abraço que me dava quando sarei de todas minhas pneumonias.
Penso em todos esses machucados como um testamento. Às vezes o corte é no coração, mas dói no cotovelo. Um amor que se perde, um animal de estimação que se vai. A dificuldade de respirar como anúncio de que você ficou menor, mais longe do ar. Minhas cicatrizes são como carimbos num passaporte. Sei como foi duro conquistar cada um, mas morro de orgulho de todos. Foi assim quando quebrei a mão na capoeira, foi assim quando numa corrida de aventura perdi todas as unhas dos pés. Talvez, me machucando nas duas pontas, meu corpo quisesse me avisar sobre a importância de ter equilíbrio, quando na verdade eu só queria ir aonde os outros não iam.
Como todo moleque, virei jogador de futebol. Mas meu excesso de querer me fez torcer o joelho. Meus ligamentos não aguentaram minha vontade. Minha vida poderia ter todos os rumos que quisesse ou os que a imaginação pedisse, mas a gente só vive realmente o que viveu. Meu joelho me aposentou. E, como um aposentado, estava livre aos 20 anos para ter uma vida nova e ir experimentar outras bobagens. Daí, por não poder mais mudar a direção da minha corrida sob a pena de sempre torcer o joelho, aprendi a correr em linha reta. E foi por isso, por aquele dia, que passei a treinar triátlon. Quem imaginaria que um tempo depois eu completaria duas provas do IronMan, nadando 4 km, pedalando 180 km e correndo uma maratona no final. Quem diria que eu conseguiria uma vaga num campeonato mundial. Hoje ao tentar manter o peso com dietas Herbalife, nem eu acredito. Não fossem as tendinites que coleciono, duvidaria que fiz. Enfim, eu era o homem de ferro que sempre suspeitei ser quando criança. Por ser indeciso demais, nunca me dei para tatuagens. Sem saber, ganharia uma da forma mais dolorida. Num feriado de Romaria, pedalando na estrada, bati num vergalhão e cai a 72 km/h numa descida. Desse dia trago dois troféus. Um, o capacete esmagado que salvou minhas memórias. O outro, a lembrança da minha namorada a cuidar de mim. Sete dias que se resumiram a ter forças para suportar a dor de um ombro queimado como fogo pelo asfalto quente. E todos os dias que olho para a marca do buraco na minha carne, me lembro daquela menina que poderia estar em qualquer parte do mundo, com qualquer um, mas estava comigo na minha cama a sorrir quando eu gemia. Tomara que as cicatrizes que eu deixei no seu coração estejam fechadas hoje. Tomara que ela pense nelas com carinho.
Mas, às vezes, as piores feridas não acontecem em nosso corpo, mas ficam nele mesmo assim. Só no dia em que meu pai sofreu o derrame é que fomos saber de tudo. Ele havia caído num golpe, perdido tudo, perdido a casa, perdido a saúde. Aquela ferida demorou a fechar. Mas quando se fechou, nos olhávamos como sobreviventes que se fizeram mais fortes desde então. E o tempo passou. E um dia, uma semana após ter visto sua neta nascer, ele sofreu um aneurisma. Morreu um mês depois na UTI. Neste caso, só neste caso, faço questão de não deixar a ferida sarar. Não quero correr o risco de esquecê-lo.
Outra vez foi com alguém que eu nem sabia direito que amava. Depois de nos encontrarmos e nos declararmos, senti que precisava segui-la. Ela saiu arrancando e eu atrás com o pressentimento de que haveria uma boa surpresa me esperando no final daquilo tudo. Algumas esquinas depois, ela passou em alta velocidade no sinal vermelho. Não consegui avisá-la. Um carro a pegou no meio, em cheio. A sensação de que poderia tê-la perdido não caberia neste texto. Por isso, saí do carro prendendo a respiração. Tinha medo de que se eu respirasse, faltasse o ar para ela. E foi quando ela se virou, olhou para mim e disse que estava tudo bem. Não fosse o acidente, não teríamos nos apaixonado ainda mais. E não seríamos tudo que somos um para o outro hoje. Eu sabia que coisas boas nos esperavam. Depois daquele dia, passei a rezar todas as noites, pedindo que ela nunca se machuque. Faço isso mesmo sem acreditar em Deus.
Sempre suspeite que o medo de encarar minha mediocridade e a vida pequena que poderia me esperar era o que me trazia para todas essas aventuras e supostas intensidades. Mas a verdade é que passei a vida inteira fugindo: fugi dos meus amores, fugi das minhas melhores oportunidades, fugi do atleta que poderia ter sido. Mas não fugi de casa. Aos 31, ainda moro com minha mãe. É que enfrentar a vida é exatamente passar a maior parte do tempo nela sendo um médio. E aí percebi que, para alguns, como para mim, até a maturidade pode não vir. Nunca cresci. Me tornei um Peter Pan no pior sentido. Mas não importa, ou se importa, importa menos que minhas cicatrizes. Só podemos nos orgulhar daquilo que foi feito. Se minha vida não me fez o homem que talvez todos apostassem que eu viria a ser, minhas quedas me fizeram ser o garoto que viveu todos seus tombos. E tentou sorrir todas as vezes. Dizem que não devemos chorar quando caímos. Sempre fiz questão de chorar. E sempre fiz questão de, ao cair, cair atirando.
E, por favor, não veja isso como mais um lamento de um desperdiçado. É que às vezes não há como se levantar do chão sem um pouco de autocrítica, de ódio por si mesmo e sem aquela leve cuspida para o alto em que você deixa que tudo caia na própria cara só para se lembrar que é importante sair do lugar. Que bom que meus ossos fora do lugar sabem melhor que eu disso.
Renato Cabral
Um comentário:
Realmente o importante é aprender com nossos tombos, acredito que não apenas os físicos mas também os da vida...
Afinal belíssima história!
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