Quem sente náuseas ao ouvir a musiquinha do Fantástico às vésperas de uma segunda-feira?
Achei que dava para suportar sem minha caderneta de frases inoportunas, sem os tapas e pontapés, que me deixavam feio, mas me defendiam. Pensei que se não abrisse a janela do departamento, estaria livre das ruas que não visitei, das mulheres que não provei. Daí, aceitei a ideia de que a velha ideia de ir de Lhasa a Kathmandu pedalando poderia esperar. Esperar talvez até que o câncer viesse primeiro, ou o primeiro infarto. Porque para toda inação ou falso desconsolo é preciso uma alavanca e um martelo para nos tirar do lugar.
E foi quando assinaram minha carteira. Tirei uma foto sorrindo, ganhei um canto na cela. Segui o horário, atento para atrasos menores que 15 minutos e no lanche comi pão com manteiga. Achei gostoso. De mentira. Falei mal de alguns perto do bebedouro. De verdade. Respondi a todo bom-dia com um sorriso carregado. Dei abraços demorados nos que faziam aniversário. Achei que, compartilhando as pequenas coisas que enchem um dia de migalhas, estaria com eles e o tempo passaria mais rápido. E passou mesmo.
Depois das dezoito, o aperto no peito cedia. Mas era leveza de vazio, de quem havia jogado sua arca de ouro no mar e ficado mais pobre que antes. No domingo, o aperto apertava de novo. O dia de folga para chorar a falta do que fazer estava acabando. E me lembrava dos poucos feriados do ano, a oferta de esmola para as almas miseráveis. E pensava nas férias, aquela ponte aérea que achamos que nos levará à felicidade. A passagem dividida em 12x no cartão.
E começava de novo, porque todo dia é uma segunda-feira para quem bate pedras ou bate o cartão. Alguns por ali ainda resistindo em círculos, como um bicho na gaiola. Outros com o mesmo olhar de “tanto faz” que já pesava meus cílios. Eu sem ser bom o bastante, ali também; mais um a colaborar com a atuação dos amolecidos, a sentir o cabresto como os equinos. Minha má-fé voluntária virou dor nas juntas e passou a arder na hora de ir para casa. Era a artrite provocada pelo auto-vodu.
Nada ajudava. Nem o self-service da esquina com sua sobremesa grátis, nem os chocolates dos dias de comemoração. Aí, nessas horas, pulava do barco e tentava mergulhar fundo, voltar para aquele lugar que um dia teve nome e não precisava esperar a folha de pagamento do dia 10 para sorrir porque paguei as contas sem juros. Mas não tinha o mesmo fôlego. E a verdade é que a poltrona já tinha as minhas curvas e o teclado a poeira dos meus dedos. No reflexo das águas, ou do monitor, a silhueta de um homem sem rosto, náufrago afogado de olhos acorrentados. Minha vontade resumida a levar o dedo ao controle do ar condicionado e gelar o ambiente seco como nossos olhos.
Então entendi que coragem e aventura são coisas para quem só morre uma vez. Nós, o povo bunda, morremos demais; a cada dia um tanto assim. Mas sem dor, tediosamente devagar. Não bastasse o peso do crachá, passei a arrastar uma vitrola de lamentações, que anunciava um cadáver cada dia menos adiado. Eu como o alterego dos armários de aço.
Daí, quando as pessoas se concentravam na sua atuação, na sua enganação, e tudo era silêncio, me lembrava que conheci homens autênticos, os que nunca morrem. Para eles, quando o fim chega, já não podem experimentar a morte. Porque quando ela está, eles já partiram. Para eles, morrer é sempre a morte dos outros. Para os amarelões, a morte vem em forma de um tapa nas costas, ou de um pequeno elogio no fim do expediente; é o pouco de grama necessária para os ruminantes mascarem seu autoengano e babarem seu desespero sem reclamar do engarrafamento até a praia.
Um dia a jaboticabeira lá do fundo do quintal vingou e me peguei sorrindo até a metade, em meio ao trabalho, no meio do dia, com o café morno nas mãos. Aquela bolota preta me lembrou que eu tinha passado a pintar os cabelos. Aquela bolota preta me lembrou que agora eu usava 44 e já não tinha mais 20.
Às vezes falava alto na sala. Eles achavam que era carência, exibicionismo, falta de prudência. Mas era eu gritando para meu outro, aquele que me esperava no portão de saída e não entrava comigo. Era meu teatro de pânico, meu deboche que sempre me deu a muleta para tirar a cara da lama. Eu, que sempre fui egoísta, esqueci que isso era o que me salvava da mesmice, era minha cerca contra as ovelhas que às vezes são mais perigosas que os lobos.
Nas comemorações de resultados, via cada um sugando do delírio do outro um motivo para acordar de novo. Estavam embriagados como nunca fui. Hipnotizados como nunca fiquei. Pareciam imersos numa ignorância libertadora. Mas a verdade é que todos tinham no olhar a cumplicidade de saber de sua mentira. Isso nos unia. Vivíamos como todo mundo vive, porque a mediocridade não torna mesmo ninguém melhor que ninguém.
E assim era o dia de todos por ali. Faltava aquele remédio para suportar o tédio: apatia ou uma escopeta. Assim, amanhã, às oito, nosso tempo estará contado; nosso corpo se revirando no mesmo lugar e o olhar perdido, o meu apontando para o Himalaia. E, que ironia, às vezes me sobra dinheiro no fim do mês. Comprarei um sapatênis. Irei com ele no próximo happy hour.
Por Renato Cabral
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