quarta-feira, março 23, 2011

Um pôr-do-sol para meu pai - por Renato Cabral

Eu estava viajando e de alguma maneira, meu pai me esperou. Esperou que eu voltasse pra que ele pudesse ir viajar. Pra sempre. Era meu aniversário e meu presente foi a eterna vontade de ter sempre ele comigo. Afinal, pai é pra se ter sempre consigo. Pai é o que vemos por um espelho mágico que reflete nossa imagem formada por genes mais velhos e menos misturados. Pai é o reflexo daquilo que ainda não soubemos refletir. Pai é o que queríamos ser, mas nunca conseguiremos.
Eu já havia lido esse texto no Cabral e ele nem sabia. E aí, ele o mandou pra mim. Me disse pra escolher uma música e fiquei com um peso nas costas. Responsabilidade aumentada. Mas como gostaria que meu pai estivesse aqui, imaginei que o Cabral também pudesse querer isso com o “seu” José Cabral. Voltar a conviver com pessoas especiais, como "seu" José ou "seu" Adelmo não tem mais jeito. Mas a gente sempre vai querer que pessoas assim estivessem aqui.




Um pôr-do-sol para meu pai

por Renato Cabral

Hoje é 13 de maio; uma terça-feira. Estou a meio caminho de um hospital e rabisco estas linhas pra meu pai. Escrevo rápido para ver se dá tempo dele me ler. De que eu possa, enfim, dizer tudo o que não pude por 28 anos. Mas ele não pode me ouvir. E falo pra mim. Agora ele está numa sala de cirurgia enfrentando o momento mais grave de sua vida. Está pregado àquele limite que não conhecemos bem, em algum lugar entre o nada e a existência que persiste. Há médicos com ele, mas ele nunca esteve tão só...

Eu nasci num dia 27 de agosto. Fazia frio e foi quando o sol se punha. Na véspera de me ter, minha mãe ainda não tinha o dinheiro. Mas tinha medo. Pegou um colar de ouro que havia ganhado de presente de casamento de meu pai e foi para a rua. Após conseguir vendê-lo, ela passou a mão na barriga e me disse: “nós vamos conseguir”. O colar da minha mãe foi o primeiro presente do meu pai pra mim. E conseguimos.

Minha mãe até hoje é meu pai também. E meu pai foi durante todos estes anos um mistério. Minha mãe me deu o amor; me trouxe à luz. Meu pai fez a inscrição da identidade na minha alma, aquilo que torna cada um de nós singular.

Eu era pequeno e levado. E um dia quebrei a pipa do meu irmão. Ele me colocou de frente para o Cristo com os braços abertos. Foi a minha primeira crucificação. A vida faria o favor de trazer outras. Logo depois perguntei pra ele o que era Deus. Não me lembro da resposta. Não importava. Só lembro que ele sorriu.

Agora, de tantas coisas me lembro. E faço esse exercício com a memória, na tentativa de criar um mundo onde nós estejamos juntos outra vez. Me lembro daquela pescaria que ele havia me prometido e que de tanta vontade eu adoeci. Fiquei dez dias com a garganta inflamada na beira do rio, dentro de uma barraca. Foram meus melhores dez dias com meu pai.

Olho mais um pouco pra trás e me vejo andando pequenino, a tomar sua camisa e seu cheiro, seu tamanho de homem, quando ele chegava do trabalho. Eu a pôr os pés em suas botas e me sentir seguro ali dentro. Ainda não sabia escrever, mas já sabia que era homem.

Ele me ensinou a pôr o anzol na linha, a andar de bicicleta sem rodinha, a mergulhar e a pular de ponta, a ter orgulho de mim, do que conquistei e do que perdi. E como eu fui orgulhoso. E como me orgulho disso. Ao invés dos velórios, meu pai preferia uma boa cerveja. Ao invés de chorar, rir muito com os amigos. Teve tudo o que queria. Há uma imagem de meu pai que é inesquecível. Eu nunca a vi, só existe em minha imaginação; mas ele contava com gosto. Foi aquela vez em que ele foi de bicicleta até Tupaciguara. Era seu jeito de me chamar de molenga quando eu caí de bicicleta e era ele a me dar banho e a limpar minhas feridas.

Também me lembro de quando ele me batia e de como eu ficava emburrando o amaldiçoando em silêncio. Eu com bico; ele firme, a me mostrar que não adianta, que ser bruto não é o melhor jeito de vencer. Eu tive o peso de seu braço em mim e chorei. Mas tantas vezes aquela mão pesada me carregou quando eu não sabia pra onde ir.

Nunca um homem lutou tanto na vida, pelos que ele adorava. Nunca um homem terminou com tão pouco, sem deixar nada. Mas pensar assim seria só ressaltar uma ilusão. Se o critério para dizer o que é uma vida cheia e rica for a conquista de bens, então, meu pai viveu como um miserável. Agora, se a riqueza for sentir necessidade de pouco e a felicidade for saber gozar com o que temos, com o que não nos falta, meu pai foi alguém que teve, mesmo em meio a sua ignorância, a verdadeira sabedoria: aproveitou seu corpo, sua beleza, sua família, sua simplicidade, seu universo, e ganhou o amor da mulher mais admirável que eu já conheci; ele também. Tivemos sorte os dois.

E agora, na porta do centro cirúrgico, eu me pergunto: o que determina que a vida de alguém não foi em vão, que tenha valido a pena? E foi uma simples foto que trouxe a resposta para o que faz da vida de um homem algo grandioso. Um pequeno retrato teve o poder de mudar o sentido que o seu destino insistiu em construir. Era a foto de meu pai com sua neta. Ele com 64 anos. Ela com sete dias. Um olhando para o outro como quem descobre um tesouro. E ambos sem saber disso, de tão entretidos e presentes que estavam, de tão ali um com o outro. Um, a imagem de um projeto que já se encaminhava para o fim, das surras e das marteladas que levara; a certeza do crepúsculo que vinha. A outra, a pequena aurora, a nova promessa, o testemunho do vir a ser. Não sei o tempo que a luz levou para ir deles até a câmera, mas é assim mesmo. Os momentos mais intensos de nossas vidas são aqueles que não fazem diferença perguntar pelas horas. Meu pai, já velho, enfim, havia encontrado sua resposta, seu tempo de recomeçar; havia reencontrado seu orgulho. Diante de uma vida de tantas perdas e desencontros, estava, enfim, em paz, sem precisar de mais nada. Só estava ali...

Tivemos uma única conversa em todos estes anos. Eu tinha 17 naqueles dias. E foi o bastante. Ouvi a história de alguém que veio antes de mim e vi nela as misérias e as glórias que esperam cada um dos que possam ter a sorte de vivê-las. Foi preciso que ambos vivessem muito, tudo para poder dizer e aceitar que, no fim, não conseguimos ser pai e filho. Mas tivemos a sorte, de novo, de nos tornarmos amigos. Havíamos encontrado aquele tipo raro de amor que só mora na amizade, no desapego, que não pede nada em troca. Estávamos felizes pelo simples fato do outro existir. Logo comigo, que jamais achei que meu pai poderia ser meu mestre, encontrei naquele senhor tão magro no leito do hospital, um companheiro para meu copo, para meu choro. E era eu, desta vez, que segurava sua mão e lhe sorria. Quem sabe ele tenha conseguido notar meu obrigado. Quem sabe...

Hoje é 10 de junho. É um dia bonito, sem nuvem no céu. O sol ainda está nascendo e não faz frio. Meu pai morreu nesta manhã, após 28 dias numa UTI, lutando pela vida, nos dando o tempo para nos despedir, para nos gostar, para nos vermos de novo de um jeito totalmente inédito. A última vez que o vi, dois dias antes, antes que terminasse o horário das visitas, tirei minha mão da dele e, saindo, meio de lado, disse eu te amo. Não olhei para os olhos dele. Não sei se ele viu ou ouviu. Foi o único jeito que consegui. No dia em que meu pai morreu, nesta terça-feira, foi assim que o sol se pôs.


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