A separação corrói o interior. Destrói os pontos que conduzem a energia que liga o cérebro ao coração. Ou vice-e-versa. Tem horas que a separação induz ao sono. Ele parece ser a melhor opção, a condição, a única possibilidade. Se fosse possível. E nessas horas, nem o sono vem servir de bálsamo.
O que é dormir? O que seria o desligar-se da realidade e entrar no mundo onírico das noites calmas e suaves? Dormir pode vir a ser o que, realmente? É uma tomada de decisão? É agir de forma abrupta, utilizar-se de ferramentas mecânicas para alterar o próprio destino? É pecado mudar o próprio destino?
Aurora
Passava das três horas da manhã quando ela desistiu de tentar dormir. Jogou seu braço direito para o lado da cama e só encontrou um outro travesseiro sem dono. Macio, mas sem dono. Percebeu que ele estava frio, diferente do seu — quente por receber suas lembranças, sua cabeça quente, seus cabelos soltos, dispersos, sem caminho. Puxou-o para si, como se seu amante fosse. Inspirou o ar guardado nos flocos de espuma e a memória olfativa começou a trabalhar. Era como se pudesse penetrar por aquele travesseiro, olhar para cada um daqueles flocos como se fossem blocos macios de lembranças. Quase podia vê-los, identificá-los pelo aroma, reviver cada gota de suor por eles absorvida. Sua composição, seus hidrocarbonetos, podia reconhecê-los, lembrar de suas faces, se existissem. Suas formas, aproximando-se de aspectos cúbicos, de aparências de paralelepípedos macios. Hexaedros assim, não muito regulares. Aqueles flocos eram seus companheiros de noites, de manhãs, de tardes de amor, acompanhando suspiros, respirações um pouco mais ofegantes, ocasiões com falta de oxigênio. Mas mesmo assim, eles não podiam lhe dar respostas. Apesar de toda a empatia, nada mais que exalar aromas eles podiam fazer. Exalar aromas.
Eram quase quatro horas de um sábado, razoavelmente diferente de outras madrugadas de sábado do passado. Silêncio de almas dormindo, de luz da Lua a penetrar pelas frestas das venezianas de madeira, velhas e alquebradas pelo abrir e fechar às notícias do tempo, das nuvens, do Sol, dos vapores de mercúrio. Das serenatas inusitadas. O calor que já se pronunciava em Outubro lhe colavam de suor as coxas — dos joelhos ao púbis —, voltadas para o lugar vazio da cama. Seu braço estendido, agora sob o travesseiro, seu nariz a buscar emoções aromáticas, seus seios a roçar o lençol, seus pés espalmados, um com a planta por sobre o outro como Cristo na cruz e os olhos a mirar a luz lunar penetrando incólume no quarto... O desconforto de não dormir começou a lhe informar que assim permanecendo — em estado de insônia — lhe imporia penas rigorosas com seu rosto, com sua disposição quando o Sol surgisse na manhã de sábado. Isso já se denunciava em seu corpo, aquecido não pelo fino lençol de algodão a lhe cobrir a nudez, mas pela temperatura da estação, pelo simples fato de permanecer acordada — havia lido há algum tempo sobre o sono, sobre como o corpo humano reduz sua temperatura enquanto dorme —, por deixar seu sangue se agitar pelo movimento que ocorria em seu cérebro. Começou a pensar na razão que lhe fazia permanecer acordada enquanto muitos dormiam. A falta de sono apenas lhe tiraria a capacidade de melhor absorver as lições do dia que se avizinhava. Mas acordada estava. Mais uma vez, acordada estava e pensando — ou se deixando corroer por pensamentos. Fazia calor. Já não eram apenas suas coxas que se colavam molhadas pelo suor. Todas as partes de seu corpo que se tocavam entre si, aquecidas, se demonstravam desta forma. Pequenas gotas exaladas pelos poros, por entre pêlos, em curvas macias, se apresentavam ao ar. Molhavam.
Girou seu corpo, afastou o lençol, apoiou suas costas na cama, afastando ao máximo os braços e as pernas do resto do corpo. Seu corpo agora respirava, espalhado no colchão como o esboço gráfico do Homem Vitruviano de Leonardo da Vinci. Áureas Proporções se mostrariam naquele pequeno corpo nu de pele branca e macia, não fosse o escuro da madrugada, cortado apenas por fachos de reflexos esparsos. No teto, percebeu a sombra refletida dos arbustos do lado de fora. Algo no jardim refletia a luz da Lua — ou das lâmpadas da rua — por entre as paletas de madeira da janela e criava sombras, figuras estranhas na laje, como um cineminha de crianças. Assim como ao se olhar muito para as nuvens acaba-se encontrando imagens com significados, aquele embaralhado de sombras e luzes começaram a significar algo. Um coelho raivoso se transforma em uma palmeira de caule mais espesso que o comum. Um pirata com bandana na cabeça se movimenta até virar uma girafa alada. Aquela outra figura seria o perfil de um rosto masculino? Algo que lembrasse alguém? Mas tudo lembrava. Dos flocos de espuma no travesseiro às sombras no teto. Essa era a razão de sua insônia e ela bem sabia disso. Essa ausência acompanhada da ansiedade eterna, da sensação que ele acabará nos próximos momentos. Mas o tempo passa e não se acaba. E as noites vêm e o sono não. Mesmo com doses quase industriais de pílulas para dormir o sono que às vezes chega é um sono cansado — talvez mesmo por causa delas —, com pesadelos e sobressaltos.
Desiste das sombras cheias de figuras no teto, acende o abajur, cerra as pálpebras, protegendo as retinas da luz que reflete na parede pintada de um quase vermelho-abóbora. Se fumasse, fumaria. Em vez disso, procura um livro e o primeiro que lhe cai à mão é uma edição de 1979 de Antologia Poética de Carlos Drummond de Andrade. Sempre Drummond. Perdem-se os amigos, perdem-se os amores, mas os poetas sempre ficam. Principalmente Drummond. As folhas do livro, se um dia foram brancas, estão agora num tom quase acobreado. Repara neste detalhe, de como as folhas estão envelhecidas pelo tempo, ou pelas substâncias que trataram a celulose até virar papel. Se põe em dúvida se as folhas estão mesmo neste tom ou se apenas absorve a cor ambiente. Segura o livro com a mão direita e puxa com o polegar esquerdo da contra-capa até a capa, fazendo uma pequena brisa com as folhas. De repente, do interior, cai um pequeno papel. Agacha-se e já identifica a ocasião de sua origem. Numa perfumaria do centro da cidade, aquele papel servira para uma amostra de um perfume masculino. Ali no assoalho, agachada com o pequeno papel de amostra de perfume colado às suas narinas, com o perfume ainda presente no papel se misturando ao seu aroma de mulher, lhe fez recordar cenas de amor, de suor, de calor. Ainda mais lembranças a lhe tirar o sono. O sono.
Sente calor, sente necessidade de dormir. Procura entre livros, discos, pequenas caixas, canetas, batons, pequenos blocos de anotações, o frasco com as pílulas para dormir. Entre tantos objetos, chacoalha como uma cascavel. Deixa-o vazio com ajuda de uma garrafa de água, sem nenhum frescor. Abre as folhas da janela e um brisa fria invade o quarto, proeminente no sobrado. O céu ainda está escuro e o dia parece não chegar nunca. Antes de desligar o abajur, toma o livro, abre numa página qualquer e lê: Mas o homem perdeu o sono. Não podia acreditar. O sono. Novamente. Seria coincidência? E esta noite que não acabava... O dia que não chegava ou o sono que não vinha... Não sabia ao certo o que queria. Se queria dormir ou amanhecer. No escuro, já não sentia calor. Uma sensação de frio lhe arrepiava. Por fora e por dentro. As imagens no teto agora eram diferentes. O preto-e-branco havia ganhado cores. Estranhas. Assim oblongas. Psicodélicas. E o quarto parecia agora silencioso, como se antes não estivesse.
O frio continuava a entrar pela janela, empurrado pela mudança de cores que começava a acontecer na abóbada celeste. Ao pé da cama, o livro de Drummond aberto quase ao meio. Se ela pudesse, leria:
Por entre objetos confusos,
Mal redimidos da noite,
Duas cores se procuram,
Suavemente se enlaçam,
Formando um terceiro tom
A que chamamos aurora.
Livro: Antologia Poética - Carlos Drummond de Andrade
Desenho: Homem Vitruviano - Leonardo da Vinci
Nenhum comentário:
Postar um comentário