As separações inevitavelmente interferem na vida das pessoas. As fazem agir de maneira totalmente amorfa. Transformam os caminhos, isolam os ares dentro dos peitos, tornam abruptos os ritmos do coração. As separações fazem pessoas ditas sensatas desistirem de assim ser. Separações geram a dor, a vontade do grito, a boca desesperada. Separações são distanciamentos físicos. Ou não. São como imãs que continuam a se atrair, mesmo não estando em contato. As separações não eliminam a força magnética. Talvez não haja ciência. Haja apenas a consciência.
Uma tosse quase periódica com origem na última mesa era praticamente o único barulho que se podia ouvir naquela biblioteca. Era possível perceber que quem tossia já se sentia constrangido, como se atrapalhasse imensamente aquelas duas outras únicas pessoas naquela tarde. Na verdade, ele nem mais percebia as tosses seguidas, como se elas pertencessem ao ambiente, como as lâmpadas, o revestimento do piso. Sobre sua mesa, papéis soltos com anotações, um lápis com uma das pontas mordida, dois cadernos, uma pasta de plástico e uma carta junto a um envelope já aberto e com alguns rabiscos e desenhos. O estado do envelope denunciava sua idade ou o desgaste a que teria sido submetido. Não havia livros em sua mesa.
[A terceira ocupante daquele imenso espaço vazio estava tão mergulhada com seus óculos de lentes grossas em dois grossos volumes que nem imaginava que do lado de fora da biblioteca fazia uma tarde ensolarada de sábado, muito menos se preocupava com a tosse intermitente do fundo do salão, tamanha era sua concentração. Ela não tinha a menor idéia, nem o menor interesse em saber o que os demais estavam estudando ou fazendo.]
Entre os vários papéis soltos com anotações escolheu um mais limpo. Tomou o lápis carcomido e escreveu a palavra olvido. Era uma palavra curiosa para ele. Sua aparência vocal com o órgão utilizado para escutar sons sempre lhe incomodava. Escreveu-a outras vezes, intercaladas com ouvido. Começou lendo-as em voz alta, fechando a primeira letra “o” em ouvido e abrindo em olvido. Quando percebeu, estava quase em igualdade de competição com a moça da tosse intermitente. Então passou a apenas analisar aqueles signos; como poderiam ter surgido duas palavras tão parecidas e com significados tão distintos? E como olvido se encaixava tão bem com sentido! Com traços volumosos, escreveu a palavra Não com “n” maiúsculo e bem maior que as demais letras. À sua mão, apenas aqueles papéis, aqueles cadernos com orelhas, o lápis. Começou a tornar o Não mais caprichado. Acertou as falhas onde não havia grafite, deu serifas aos tipos, arredondou o til e terminou fazendo com que o interior do “o” se transformasse numa magra e quase perfeita elipse. Colocou o papel para o lado e pôs a carta no envelope. Ficou quieto por uns três minutos com as duas mãos espalmadas por sobre o envelope, olhando para frente. Só via as estantes da biblioteca com livros e mais livros, entremeadas pelos corredores que lhe permitia a vista alcançar, na parede do fundo, uma reprodução do quadro O Grito de Edvard Munch. A boca da personagem da tela lhe pareceu familiar, como uma letra “o”. Tomou o papel novamente e com o lápis já quase sem ponta escreveu a palavra FIM, em maiúsculas. A palavra saiu quase colada ao “o” do Não, mas pelo lado de baixo. O papel havia se virado e a esguia elipse havia se deitado e o “m” do FIM a tocava. Com a ponta muito grossa do lápis e a rapidez como escreveu a palavra FIM, o “f” havia se encostado no “i” e virou um “a” maiúsculo. Ficou olhando para aquilo e leu AMO, com um “o” muito maior que o resto. Esboçou um sorriso e pensou que mesmo as coisas findas podem se tornar lindas.
Tomou novamente o envelope nas mãos, tirou de seu interior a carta puída de tanto ser manuseada. Abriu suas folhas, colocou-as sobre a mesa e, com o indicador, tentou reduzir as protuberâncias das dobras — isso explicaria o estado do papel. Leu a carta como que fosse a primeira vez. Parou em alguns parágrafos, tentou entender a colocação de algumas palavras, respirou nas vírgulas, parou nos pontos. Ao fim de cada página, colocava-a por baixo das demais e continuava. O dedo indicador da mão direita sempre tentando eliminar a orelha do canto superior direito da folha. As paradas dos parágrafos, a respiração das vírgulas, o descanso dos pontos. Na última página da carta, demorou-se mais, apesar da menor quantidade de palavras e do maior espaço em branco do papel sem pautas. Fixou-se em algumas palavras, olhou bem para a assinatura, verteu uma lágrima. Com o dedo indicador, limpou o líquido do papel, mas já havia mais um círculo enrugado na carta, como as pontas dos dedos quando ficam muito tempo na água. Voltou seus olhos e num relance leu a palavra insensíveis. Ela estava colocada num contexto que tratava das relações desgastadas de duas pessoas. Instantaneamente, ele pegou a última página da carta e a colocou por baixo das demais. Surgiu não outra folha de carta, mas a página de um livro, arrancada de suas companheiras. Nela, um poema de Drummond falava de coisas findas, de coisas intangíveis, de coração confundido, do apelo do Não. Na parte da página sem tipos impressos, uma dedicatória escrita com tinta azul à missivista, que a devolvia junto à carta.
Ele olhou para aquelas letras angulosas há muito escritas naquele pedaço de papel e se lembrou quantas vezes recitou aqueles versos para ela. Ficou imaginando quantas vezes ela os havia lido. As quatro estrofes com três versos sempre terminados em “ão”, um som tão melancólico, sem existência em outras línguas. Os dois primeiros versos de cada estrofe em rima criavam ritmo em cada vez que eram pronunciados. Mais uma vez ficara extasiado com a beleza daquelas palavras simples, mas que colocadas naquela seqüência, diziam tanta poesia! Quanto tempo aquele pedaço de papel ficou fora do livro original? pensou ele. Não havia data na dedicatória, mas pôde relembrar quando naquela mesma biblioteca, há tempos havia arrancado aquela folha — para espanto dela pelo absurdo do bárbaro ato — e feito aquela dedicatória. As mulheres se encantam quando os homens fazem absurdos por elas. Mas agora encanto não mais havia; e o produto do absurdo estava ali nas suas mãos.
Olhou para a reprodução no fim do corredor, percebeu que quem tossia havia deixado o ambiente, voltou a vista para a mesa, juntou os papéis e os cadernos na pasta plástica, dobrou a carta, guardando-a no envelope e este na pasta. Pegou o poema e dirigiu-se às estantes. Conhecia-as muito bem e assim chegou rapidamente numa seção de Literatura Brasileira. Retirou um livro e foi direto no local onde faltava uma folha. A inexistência dela estava ali, quase a reclamar por sua falta. Pensou em quantas pessoas deixaram de ler aquela maravilha por tanto tempo. Pensou em quanto tempo deixou de ver maravilhas em outras pessoas por ter cometido aquele ato. Colocou a página no vazio, leu o poema por uma última vez, fechou o livro com sua dedicatória dentro e o colocou no seu lugar. E se foi.
A terceira pessoa estava tão mergulhada com seus óculos de lentes grossas em dois grossos volumes que nem percebeu que estava sozinha naquele mundo silencioso, perdendo um pôr de Sol deslumbrante que acontecia do lado de fora da biblioteca.
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