Muitos de nós passamos por questionamentos brutais, por perguntas que não querem calar. Duvidamos de coisas até então ditas como verdades, olhamos para os lados com olhos diferentes. Miramos o horizonte com olhos que parecem não ser os próprios. E às vezes é necessário entender que viver nada mais é que estar num eterno estado de mudanças. Penetrar nesse mundo é penetrar na vida. Assim se parece.
No mês passado postei aqui um texto onde alguém com mais experiência se questiona, busca por coisas e pessoas que há muito se pareciam perdidas no tempo e no espaço. Agora, de certa maneira, isso se repete aqui, mas com enfoque diferente. Um olhar na necessidade de mudar até os ossos e continuar a ser a mesma pessoa. Talvez nós podemos mudar tudo e continuar a ser a mesma pessoa.
Viagem com Goethe
Ela estava naquele aeroporto, mas seu pensamento não. Estava na assustadora massa de água salgada que teria que transpor para realizar sua aventura. Pensava o pior. O avião no oceano, pedaços de tudo espalhado por onde a vista alcançasse. E aquela massa brutal de água por baixo do seu corpo. Balançou a cabeça e sentiu aqueles pensamentos escaparem como água por cabelos molhados. Começou a se lembrar de Goethe. Rapidamente enfiou a mão na bolsa de tecido impermeável e sentiu que não havia esquecido o livro. Imaginava-se caminhando entre ciprestes, em cidades medievais, conversando com velhos que lembrassem seu avô. Tirou o livro da bolsa, puxou a capa e leu na orelha: “Sigo sendo a mesma pessoa, mas creio ter mudado até os ossos”. Queria se sentir na viagem assim, do mesmo jeito que Goethe se sentiu naquele tempo, há mais de duzentos anos, bem mais que seus quase vinte. Mas percebeu que já se sentia desta maneira. Os acontecimentos das últimas semanas tinham feito até seus ossos mudarem. Se fosse há um ano atrás, a decisão de vender seus poucos bens para empreender esta viagem seria impensável. Se lembrava de como era metódica e nem um pouco dada a arroubos ou aventuras. Era apenas mais uma dedicada universitária que se formaria com notas altas, paparicada por professores orgulhosos de sua cria. Professores. Seu pensamento tinha saído da morte eminente em águas internacionais para cair onde ela não queria, de onde queria fugir. Não teve jeito. Foi preciso lembrar-se dele, como numa necessidade de vomitar o que lhe revolvia o estômago, o coração. Lembrou da primeira vez que o viu, na sala de aula, no terceiro dia de faculdade. Sentara-se na primeira fila de carteiras, como havia feito por toda sua vida escolar; ele chegou à beira do tablado de madeira, que servia de uma espécie de palco. Ela sentada, ele de pé. O campo de visão que ela tinha era amplo, mas só tinha olhos para a apertada calça jeans do professor. Olhou tanto, tentou tanto imaginar seu interior, que ele não pôde deixar de perceber a avidez daqueles olhos azuis. Não foi necessário mais que um mês para se envolverem numa ardente relação, meio estranha, meio implacável. Um já meio grisalho professor de quarenta anos e uma branquela miúda de dezoito. O ar nas aulas parecia eletrificado e esta eletricidade afetava os demais alunos, que rapidamente perceberam o que acontecia. E quanto mais pessoas começavam a perceber a relação dos dois, mais ela procurava ser como sempre foi. Fechada em si mesma, dedicada aos estudos, devorando livros, tirando as melhores notas da turma. Sentando-se na primeira fila.
Por um momento, uma enorme algazarra lhe roubou a atenção. Uns trinta metros à frente de onde estava sentada, um grupo de pessoas recebia alguém que chegara de longe. O viajante dizia em voz alta – praticamente gritava – como era bom voltar ao seu país, como o cheiro de sua terra era bom. Imediatamente ela se lembrou de uma frase do livro que segurava contra o peito: “Signor, perdonate! Questa è la mia patria!”. Abriu um sorriso, se lembrou do trecho do livro, em que uma medonha cantoria havia assustado Goethe, e de certa forma, desculpou aquele senhor por assustá-la também. Começou a pensar se se comportaria assim também quando retornasse. Iria mudar até os ossos e seguir sendo a mesma pessoa? Iria gritar num saguão de aeroporto para tantas pessoas sua saudade de seu país? Abraçaria e beijaria as pessoas como aquele senhor estava fazendo? Percebeu que poderia sim, pois ter entrado de cabeça num caso de amor sem futuro, com um homem casado, absolutamente apaixonado por sua mulher de anos de convivência já foi uma mudança até os ossos. Ter deixado para trás este estranho caso de amor foi outra óssea transformação. Ter trancado a matrícula na faculdade. Ter vendido carro, terreno. Ter posto as mãos em todas suas economias. Ter decidido imitar, ao menos em parte, o que Goethe fez. Ter tomado a decisão de partir como Goethe fez, no anonimato, sem que ninguém soubesse. Apenas cartas postadas horas antes de sua partida contariam para pessoas escolhidas seu destino, mas não sua volta. Pela primeira vez estava analisando como havia feito várias mudanças num período tão pequeno de sua vida, ainda tão inicial. Imaginava-se, até então, como uma personalidade pronta, perfeita, sem necessidade de alterações. Imaginava-se intelectualmente encaminhada e ponto final. O que mais poderia importar se não o alcance de seu sonho? Não havia percebido quanto que mirar num sonho impede de sequer olhar de relance para outros. Era excessivamente focada em suas atividades, buscando sua meta com a firmeza dos grandes executivos de grandes corporações. Passaria por onde e por quem fosse necessário para atingir seu objetivo. Mas naquele momento, sentada num banco de aeroporto, à espera do anúncio de embarque, percebeu que já havia mudado até os ossos. Parecia uma pessoa totalmente diferente. Era louca antes ou tornou-se agora? Não conseguiria responder, mas se sentia segura e tranqüila quanto ao desejo de chegar ao seu destino. E para vislumbrá-lo melhor, abriu o livro e procurou as aquarelas, os nanquins, os rascunhos realizados há séculos, retratando as paisagens que ela ansiosamente aguardava encontrar.
Fechou o livro, olhou para seu relógio quase que simultaneamente ao aviso de embarque ecoando por todo o aeroporto. Teve a sensação que o aviso era unicamente para ela e como se assim fosse, se levantou e foi atender à solicitação. Jogou a bolsa-mochila às costas, arrumou o prendedor nos cabelos e, no rápido movimento da cabeça, percebeu com o canto dos olhos uma figura de aspecto familiar parada no mezanino do saguão, com as mãos apoiadas no guarda-corpos. Sentiu um frio na espinha, mas se conteve e não voltou seu olhar para ela. Começou a caminhar para o portão de embarque imaginando se o vulto que havia visto poderia ser ele. Se fosse, não teria descido? Estaria ali só para se certificar de sua partida? Ou seria outra pessoa com o mesmo biótipo e vivendo sua própria vida? Ela não quis resposta e entrou no corredor, mostrando bilhete e documentos aos funcionários da companhia aérea. Enquanto caminhava no túnel que levava à aeronave, se virou para trás, mas só via pessoas que lhe acompanhariam na viagem.
Sentou-se em sua poltrona junto à janela, olhou para fora e as luzes do aeroporto eram embaralhadas pela garoa que formava gotículas na superfície transparente. Uma senhora de uns cinqüenta e poucos anos, com certeza em sua primeira viagem de avião, senta-se na poltrona oposta, na mesma fileira e está pálida, como a luz branca da aeronave. Sua respiração é difícil e o suor desmancha sua pesada maquiagem. Pouco depois senta-se ao seu lado uma mulher de uns vinte e cinco anos, mostrando ter muito, muito mais experiência de vida que a mãe apavorada, com um copo de água, procurando acalmar-lhe. Desvia o olhar, que já censurava o estilo de vida da filha da assustada mãe, ajusta o cinto, estica as pernas e volta novamente o olhar para o aeroporto. Os comissários de bordo fazem o procedimento padrão e a aeronave começa a se movimentar.
A chuva parece aumentar ou talvez a simples movimentação tenha transmitido esta impressão. A grande massa metálica já corre contra o vento, deixando as luzes do aeroporto obliquamente inclinadas e empanadas pela velocidade. Ela continua a olhar pela janela e o que vê é uma imensa camada de nuvens que por muito tempo permaneceriam ali, dando a impressão que o avião estava parado. Decidiu que sua atitude de não olhar para a tal figura foi a mais acertada, acalmando assim, sua inquieta alma. Algum tempo depois de observar as características das personalidades de alguns de seus acompanhantes, ela olhou para fora e já podia ver algumas estrelas. Estava sobre uma enorme massa de vapor de água que estava sobre uma enorme massa de água salgada e sob uma enorme massa de estrelas. Mais uma vez veio à sua mente o eterno estado de mudanças em que havia penetrado. Haveria de mudar novamente até os ossos e continuar seguindo a ser a mesma pessoa? Fechou os olhos, dormiu e sonhou que estava caminhando entre ciprestes, em cidades medievais, conversando com velhos que lembravam seu avô.
Livro: Viagem à Itália: 1786 – 1788
Título original: Italienische Reise
Autor: Johann Wolfgang von Goethe
Tradução: Sérgio Tellaroli
Ed. Companhia das Letras – São Paulo - 1999
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