Em Dezembro publiquei um texto que faz parte desse grupo de prosas curtas sobre separações, do qual esse agora faz parte. Depois do post vieram me perguntar se é ficção ou se aquilo aconteceu. Disseram que há detalhes demais para não ter acontecido de verdade. Mas é ficção. Mas há coisas ali retiradas de coisas acontecidas. Não necessariamente comigo. Podem ter acontecido comigo. Ou com você que me lê, caro leitor... O bom da ficção é isso. Talvez não aconteceu... Mas pode ter acontecido. Com você, comigo, com o cara que mora em frente, com o personagem de um filme antigo que passa na TV de madrugada. Ou com seu pai.
Neste post, acontece o mesmo. Muita coisa aí pode ter acontecido. Outras poderiam. O limiar do acontecer é tênue demais. Um mínimo desvio e aquilo que poderia ter acontecido fica apenas na imaginação. Na ficção. Ou não.
Não posso tirar meus olhos de você
Enquanto assinava a fatura do cartão de crédito para pagamento de quarenta litros de gasolina e de uma garrafa de água mineral, percebeu que todas as pessoas que estavam próximas ao pátio do posto olhavam curiosas para aquela obra de arte montada sobre quatro pneus. Claro que não era a primeira vez que isso acontecia. Houve casos de crianças que pediam para dar uma voltinha, sob o olhar de adultos morrendo de inveja e se arrependendo de terem crescido e perdido a inocência das crianças. Nestas horas, esta inocência fazia toda a diferença. Guardou o cartão na carteira, pegou as chaves do bolso, tirou uma folha de uma sete copas que havia se jogado sobre a capota preta, entrou na obra de arte e todos lhe olhando. Quando pôs a chave na ignição e a girou, o motor V8 de 365hp roncou grave, maravilhando agora os ouvidos dos donos dos olhos já maravilhados na platéia. Reparou que um adolescente falou algo com muita convicção para alguém que deveria ser seu pai, que concordou com a cabeça, sorrindo. Engatou a ré e começou a se afastar lentamente, quase que para não atrapalhar o deleite das pessoas. Foi quando se aproximou da dupla e pode escutar quando o filho disse ao pai que o carro era tão bonito que não podia tirar os olhos dele. Sentiu que havia poesia naquelas palavras, sentiu-se parte dela e sorriu interiormente, pois também sentia a mesma coisa. Acelerou pelo piso de paralelepípedos e quando já saía do posto, tomando a rodovia, olhou pelo retrovisor externo e todas aquelas pessoas olhavam em sua direção, com rostos quase que extasiados.
Manteve na memória o rosto do tal adolescente e se lembrou que foi naquela idade, com uns quatorze ou quinze anos, que vira pela primeira vez um Chevelle. Era uma época que não existiam carros importados no país e apenas por ser um, já era muita novidade. Mas as formas do carro, o barulho do motor, tudo isso maravilhou aquele adolescente dos anos 70. Naquela época, aquele exemplar já tinha uns três ou quatro anos, mas seu proprietário cuidava dele como uma obra de arte que realmente era, por isso sua aparência de zero quilômetro que aquele adolescente imaginou ser. Só muito tempo depois é que ficou sabendo que aquele era um Chevrolet Chevelle SS 454, ano 1971.
Depois de quase trinta anos, estava ele dirigindo um destes exemplares raros de máquinas que não se fabricam mais. Observou o interior do carro e se lembrou como estava quando o comprou, quase pronto para o ferro velho. O interior fora inteiramente refeito: forrações, bancos, painel. A maioria com equipamentos originais e reformados. Olhou para frente e viu apontando para a faixa preta de asfalto sendo engolida, o capô vermelho com as duas faixas pretas, que se repetiam na traseira. Começou a se concentrar na viagem, pois algum apressadinho num carro de último tipo acabara de lhe ultrapassar de forma perigosa. Mas não conseguia deixar de pensar como o sonho adolescente de possuir um Chevelle o acompanhou e talvez tenha interferido em outros, positiva ou negativamente. Esta viagem era um destes exemplos. Estava sendo realizada exatamente para resgatar um outro sonho quase perdido. Mas pensava no garoto no posto com o pai, em suas palavras, quando se lembrou de uma fita cassete que deveria estar no porta-luvas do carro. Segurou a direção, se inclinou para a direita e, mantendo a vista para a rodovia, vasculhou entre vários objetos em busca da fita. Lá estava ela, solta, sem a caixa que havia se quebrado há muitos anos. Olhou para a etiqueta grudada onde leu: “Janeiro de 1983”. Quem a gravou não havia se importado com os títulos das músicas, muito menos com seus intérpretes, por isso, ele procurava uma música, que por ter marcado tanto sua vida, sabia seu nome. A música havia sido gravada por vários artistas, mas curiosamente, nunca ficara sabendo a intérprete daquela gravação. Colocou-a no toca-fitas e começou a procurar a música. Achou-a facilmente, tantas e tantas vezes que havia feito esta operação vinte anos atrás.
— Oh! Pretty baby!... I need you baby!, cantava a plenos pulmões. Pelo jeito que cantava, acabou se lembrando de um filme que o marcou, mas que não se lembrava do nome. Era algo como The deer hunter, com Robert de Niro em mais uma de suas magistrais interpretações, além da cena que tanto o marcou, com a personagem de Christopher Walken metendo uma bala na própria cabeça. O filme tratava de pessoas que tinham uma vida tranqüila, caçadores de finais de semana, que de uma hora para outra se viram metidos numa guerra que não lhes pertenciam e viam suas vidas se perderem nas selvas e pântanos do Vietnã. Neste filme, numa cena ótima, soldados em folga tomavam cerveja e jogavam bilhar e cantavam aos berros — como ele cantava agora — a mesma música sobre uma gravação de Frank Valli. Aquela vez no cinema, não era a primeira que a havia escutado. Era uma canção que fez sucesso nos anos 60, mas ele era apenas um menino então. Como uma música de sua época de infância pôde marcá-lo tanto assim? Tornara-se a música que embalou o caso de amor de sua vida, agora realmente havia se certificado disso. Estava naquela estrada por isso. Não admitia perder um sonho assim, sem lutar. Já tinha concluído que havia dirigido sua vida de uma maneira que agora se arrependia. Conseguiu o Chevelle e toda a epopéia de sua restauração apenas porque utilizou esta tal “maneira” de dirigir sua vida. Havia conseguido muito para um menino encantado por um automóvel, mas absolutamente sem dinheiro para consegui-lo. Mas só pensava agora em retomar um sonho que em nada dependia desta sua “maneira”. A atriz principal do seu filme — cuja trilha sonora urrava dentro do carro —, que há vintes anos lhe acompanhava, já não agüentava mais esta “maneira” de vida e voltara para sua cidade natal, no alto das montanhas.
Desligou o toca-fitas, pensou como iria chegar a ficar de frente para ela, depois de tudo o que havia acontecido, o que iria falar, se tocaria a música para ela se lembrar do tempo em que ela havia gravado a tal fita cassete, escrito aquela etiqueta com aquela data... O que realmente falaria a ela? Como isso era difícil para ele. Talvez dissesse algo como “não posso tirar meus olhos de você”. Não seria nada original, mas era verdade. Mesmo assim, já não tinha tanta certeza da decisão que tomara de viajar. Mas estava quase chegando. As curvas da estrada, serpenteando pelas montanhas mostravam isso. O dia ia se indo, o Sol já se apresentava apenas por seu poder laranja-vermelho a tingir o céu e uma fina fatia que ele observou intermitentemente pelo retrovisor, até desaparecer por completo.
O Chevelle ano 71 rolava imponente pelo asfalto juntando seu vermelho ao laranja do céu unindo-se no horizonte. A noite começava a cair e o que se viam eram apenas as luzes vermelhas das quatro lanternas redondas da traseira do Chevelle.
Música: Can't Take My Eyes Off Of You
Autores: Bob Crewe – Bob Gaudio
Intérprete: Gloria Gaynor (mas há outros: Frank Valli, Lauryn Hill e mais um mundo inteiro de pessoas que adoram essa música)
Filme: The deer hunter
(Ganhador do Oscar de melhor filme de 1978)
Direção: Michael Cimino
História: Michael Cimino, Deric Washburn, Louis Garfinkle, Quinn K. Redeker e Deric Washburn
Atores: Robert De Niro, Christopher Walken, Merryl Streep, John Savage, John Cazale.
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