segunda-feira, dezembro 24, 2007

Uma tarde numa véspera de Natal

Minha mãe era uma pessoa especial. Toda mãe é. Mas quem conheceu a minha sabe do que eu estou falando. Era uma guerreira. Eu queria ter herdado metade de sua garra. Mas herdei muita coisa. Quem a conheceu e me conhece sabe do que eu estou falando. E quem é que não se lembra de sua mãe numa data como essa? Me lembro de tanta coisa, mas queria dizer aqui de uma coisa simples, que durante muitos anos me fez ficar com ela num dia como esse.

Dona Laura cozinhava maravilhosamente. Quem a conheceu sabe do que eu estou falando. Mas num dia como esse, ela sempre fazia umas roscas trançadas que acabávamos comendo por toda a semana. Não sei a receita, mas me lembro que uma bolinha da massa era colocada num copo d’água e quando ela subia era sinal que estava na hora de colocar no forno. Era o fermento dando o aviso que a massa havia crescido o suficiente. Não tenho a mínima idéia da razão que fez um menino como eu ter a habilidade de ir batendo aqueles ingredientes, sovar a massa, separar os pedaços e com as mãos ainda pequenas, transformá-los em cilindros deliciosos e, três a três, torná-los uma trança quase perfeita. Em seguida, eu colocava algumas uvas passas naqueles “vales” formados pelos gomos da massa, tomava um pequeno pedaço de gaze, embebia numa gema de ovo e besuntava cada uma das roscas. Isso as fariam ficar coradas e vistosas.

Participei desse ritual por muitos e muitos anos. Comecei ainda menino e já muito maior que minha mãe ainda a ajudava. Ela sempre falava que eu fazia muito bem. Não sei se era isso mesmo ou se ela dizia isso pra me agradar. O fato é que eu achava que era bom no assunto. O fato é que eu fazia aquilo não pelas roscas, não pelos elogios. Fazia mesmo pra ficar com ela na cozinha. Fazia pra escutar a voz dela me direcionando. Ficava ali, curtindo aquele tempo, farinha de trigo para todo o lado, um copo de vinho tinto por perto. Ficava beliscando a massa crua e ouvindo ela dizer que aquilo iria crescer na minha barriga. Era muito bom mesmo.

E então, sempre num dia como esse, essa é uma recordação que me vem. As vésperas de Natal eram assim. O presépio estava lá na sala, com o pescador com um peixe sobre a lâmina de espelho e muita serragem em volta. O Menino Jesus só seria colocado na manjedoura à meia noite. Eu fazia questão de me encarregar disso. O dia passava lento e a noite não chegava nunca. A cozinha vivia com pessoas que queriam saber dos preparativos, que queriam tomar um café.

Hoje os dias passam rápido demais. Não sei nem como iniciar a preparação de uma daquelas roscas. Eu deveria ter me esforçado mais e aprendido tudo delas e não só dar-lhes forma. Talvez eu estaria agora preparando uma fornada, ao invés de escrever essas palavras. Eu deveria ter dito a ela o quanto gostava daquelas horas, mas não disse. Não sei qual seria a palavra ideal pra descrever essa falta minha. Sempre fui ruim em vocalizar as palavras, sempre preferi escrevê-las. Mas acho que eu deveria ter dito. Eu deveria ter feito muitas outras coisas.

2 comentários:

Unknown disse...

... o importante é que os momentos felizes ficam conosco pela eternidade.
E que vc tenha muitos muitos momentos felizes para serem relembrados aqui ou em qualquer lugar...
Feliz Natal!!

Bjo.
Renata.

Unknown disse...

Amigo, com a mãe da gente, por algum desses mistérios inomináveis, não precisamos de tantas palavras assim... elas sabem, sentem, pressentem ou sei lá o quê, os nossos sentimentos. Já reparou quando a gente fazia alguma "arte" ou estava com algum medo ou estava com alguma coisa entalada pra falar pra ela e ficava rodeando, beirando a saia, indo atrás dela sem saber como começar a conversa... pois é, quando a gente começava a gaguejar as primeiras palavras trêmulas, ela vinha com uma mão suave sobre a cabeça e soprava um "shiiii, pode deixar que eu já entendi...".
Depois disso, só um abraço e um choro.
Conserve tas lembranças, mas não pense que ela não sabia o que vc estava fazendo ali, do que vc gostava quando estava ali. Mãe e Deus têm um canal direto nós é que só descobrimos isso muito depois...

Abraço forte, Ricardo Lopes.