Eu já havia escutado, mas apenas fui ler suas palavras por volta dos vinte anos. É um poema conhecido que Fernando Pessoa escreveu sob o heteronômio de Álvaro de Campos. Quando o li, ele estava num quadro da parede do apartamento do avô do Luiz Eduardo, o professor Milton Porto. Não sei mais dizer porque eu e o Sílvio íamos estudar na casa do avô dele. Mas era um apartamento grande, antigo, com salas amplas, no centro da cidade. Quando vi aquele quadrinho com um poema escrito, fiquei curioso. Por que alguém o colocaria ali, emoldurado? E por que esse e não tantos outros do Fernando Pessoa? Ou do Drummond? Ou do Bandeira?
O tempo passou, li mais Fernando Pessoa e este poema sempre me vem à mão. Hoje o entendo melhor, o sinto melhor. Os que me lerem aqui poderão entender do que eu falo, se já se sentiram como no poema. Alguém que tenha fugido para fora da possibilidade do soco. Outros que me lerem, talvez como o universitário que visitou o apartamento do professor Milton, provavelmente não irão captar, como eu não captei na época, a garganta travada, o gosto na boca, o sangue a premer as artérias. Terão antes que ter levado porrada.
Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo.
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida…
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó principes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,