Outro dia foi aniversário do Tribuna. Gregário que é, ele chamou alguns seletos amigos para um bar. Depois continuamos a conversar. E conversar e conversar. Tanto que fomos expulsos do bar, pois os funcionários e o gerente queriam ir dormir. Acabamos indo para outro. E conversamos. Falei sobre escrever com o Júnior. E acabei me lembrando de um texto que escrevi em Julho de 2000, que resolvi publicar aqui. É um texto que fala muito, que conversa, que fala de conversa. É um texto feito sob inspiração de uma música de Fernando Brant e Toninho Horta, “Manuel, o Audaz”. E essa coisa de conversar é que me motivou a escrever isso aqui. E quem sabe, pode motivar mais alguém também. Tá aí.
Audaz e Preto Comedor de Asfalto Preto
Se fôssemos o Fernando Brant e o Toninho Horta, talvez o chamaríamos de Manuel, o Audaz. Mas perto da música que eles faziam, não éramos ninguém. Audazes éramos nós.
Não era um Jipe que rasgava as estradas de terra, pelos cerrados. Era apenas um Chevette preto. Potente, sim. Mas um Chevette. Preto. Comparado aos carros de mil cilindradas de hoje, com a sua tecnologia avançada, aquele era um dinossauro. Está certo. Tudo bem. Um Velociraptor. Mas era um dinossauro. Não estava extinto, mas em breve seria. Grunhia toda vez que o Júnior lhe premia o acelerador. Grunhia, mas respondia com sua potência e sua raiva, como se em suas entranhas de aço só houvesse lembranças que lhe atacassem a alma. Sua alma de alguns cilíndricos cúbicos urrava toda vez que tentávamos uma conversa amigável com ele. Júnior conversava diretamente com ele, passava a mão em sua cabeça, lhe dizia palavras de conforto, mas mesmo assim, ele não ouvia. Insistia em nos levar para o mau caminho. O tapete preto de asfalto que lhe aparecia à frente era o convite. Um convite que lhe era insaciável. A noite preta, a noite fria não era nada perto daquela superfície. A textura, a microvilosidade, a composição de pedras britadas com o betume, com o resto do sangue dos dinossauros, lhe traziam sensações, vibrações em seus cilindros que na hora não captávamos. Só depois é que o compreendíamos.
Um dia, o Júnior disse que iria lhe tirar alguma peça, um parafuso ou sei lá o que do escapamento. Uma peça que de certa forma deixava o barulho do motor mais, digamos assim, civilizado. Civilização era o que não queríamos naquela hora. Então era uma ótima idéia. Sem civilidade, enfim, fomos nós. Comendo o tapete preto do asfalto. As pessoas na rua nos olhavam com censura, e era isso que nós adorávamos. O ruído do motor do Chevette entrava pelo compartimento interno, no habitáculo, de tal forma que quase não podíamos conversar. Mas para que queríamos conversar!... Eu e o Júnior não conversávamos naquela hora, até por que ele dirigia. E eu, de certa forma, conversava com o Chevette. Escutava suas palavras, seus gritos. Entendia seu ponto de vista. Seus faróis iluminando e embranquecendo o preto do asfalto era como uma tela de cinema, a refletir a projeção de um filme já visto. John Lennon cantava no toca-fitas e sua voz falava de um herói da classe operária. Lembrei-me por um átimo dos homens que construíram aquele tapete. E assim, por um átimo, deles me esqueci. Tentei me imaginar vinte anos à frente daquele tempo. Não vi ninguém. Não consegui ver um homem de poucos cabelos, fios brancos na barba, pele flácida na face. Não consegui enxergar o homem que estaria relembrando aquele mesmo momento. Nada vi naquele momento além do tapete preto a ser engolido pelo “Audaz e Preto Comedor de Asfalto Preto”.
Talvez uns vinte anos depois deste tempo, não sei se passaram tantos anos, ou talvez nem isso, me lembro hoje daquele carro, daquela máquina. Máquina que moveu nossos corpos e, claro, muito mais que isso, moveu nossos corações, nossas almas para frente, como era a única coisa que ele podia realmente fazer. Lembrei-me assim de sua audácia em nos levar à frente de nossas miúdas concepções de nossas vidas. Lembrei-me de sua audácia em nos mostrar que não éramos ninguém, que não viríamos a ser ninguém. Hoje vejo sua audácia de nos mostrar que ser ninguém é ser muito mais que qualquer um gostaria de ser. Aqueles momentos olhando para o preto tapete de asfalto, iluminados pelos faróis sábios do Chevette preto nos deram a visão do que poderíamos encontrar pela frente.
E se hoje eu já nem sei o meu nome, se eu já não sei parar e olhar para frente, mesmo assim eu sei olhar para trás. Vejo o Chevette preto. Seria um Audaz, talvez. Vejo tapetes pretos rolando por baixo de mim. Vejo-o comendo luzes refletidas sobre britas pretas, sobre faixas reflexivas. Vejo o céu preto com pontos reflexivos. Vejo ao lado da nossa viagem o escuro do mato não iluminado.
Não me lembro se o Júnior lhe chamava de um nome próprio. Apenas me lembro que quase como o Manuel, o Chevette preto para mim era o Audaz. E olho para minhas mãos e ainda vejo as marcas escuras de graxa que aquelas peças do escapamento deixavam toda vez que provocávamos o bicho.
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